Coleção Clássicos da Literatura Juvenil

Apresentação e resenha dos livros da coleção editada pela Abril Cultural entre 1971 e 1973.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Volume 24 - Robinson Suíço - Johann Rudolf Wyss

O vigésimo-quarto volume da coleção Clássicos da Literatura Juvenil apresenta, de início, uma curiosidade: ele foi composto a seis mãos. Embora ele traga o acadêmico, professor de filosofia e editor de folhetim Johann Rudolf como autor, ele foi na verdade escrito por seu pai, Johann David, e ilustrado por seu irmão, Johann Emmanuel Wyss.

Evidentemente, Robinson Suíço, publicado em 1812, foi inspirado em Robinson Crusoé, já apresentado nesta coleção. Como forma de evitar longas e chatas análises comparativas que seriam para lá de óbvias, vale a pena destacar aquilo que a obra traz, segundo a leitura desta que vos escreve, de notável.

O primeiro e mais destacável dos pontos da obra da família Wyss é o didatismo com que o livro foi escrito. O desejo de Johann David Wyss era compor uma obra tão importante e tão bonita quanto a de Daniel Defoe, mas que pudesse ser facilmente lida pelas crianças. Assim, diferentemente de seu predecessor, a obra do escritor suíço já nascia com um público-alvo infantil e juvenil definido, e tal objetivo delineou a obra e o tom usado nela.

Uma família de suíços – os Starks – viajam rumo à América para ali se estabelecerem em terra herdada pelo patriarca, quando uma tempestade quase leva o navio a pique, prendendo-o num banco de areia próximo a uma praia daquilo que não se sabe ser ilha ou costa de continente. Resignados, pai, mãe e os quatro filhos homens, variando de idade dos 8 aos 15 anos, descem para reconhecimento da terra nova. Começa aí a aventura de colonização da terra, com um vocabulário amplamente explicativo das plantas, das aves, da pesca e de toda a vasta caça da região, bem como dos diferentes tipos de terreno ali encontrados, incluindo grutas com estalactites, sal e gesso, além de toda a carga animal, vegetal e de instrumentos e roupas que transportam do navio atracado até as fortificações que constróem.

O empreendedorismo, a disciplina rígida e o trabalho em grupo resultam na criação de vários pontos de estadia, além de currais, celeiros, plantações, pastos, e até mesmo uma casa na árvore para toda a família. Em todo o livro, jamais o tom de lamento, de saudade ou de desespero aflora – pelo contrário: trata-se, antes de tudo, de manter o espírito são, o corpo sadio pelos exercícios e pelo trabalho, e a boa educação europeia em constante uso. Corrobora para isso a biblioteca do navio e o forte espírito protestante que marca toda a narrativa do que na verdade é um manual altamente moralizante.

De todas as passagens, vale a pena destacar, como ponto alto neste romance sem grandes intenções literárias dadas a clímax, o primeiro dia de descanso da família (que, como se espera, foi num domingo). Nesse dia, o pai senta-se e conta à família a história de duas terras pertencentes ao mesmo Rei: o Reino da Possibilidade, ou da Noite; e o Reino da Realidade, ou do Dia. No primeiro, longíquo, escuro e frio, nada se fazia, e a inatividade era a nota sonante do lugar. No segundo, operava-se o milagre da ação e das grandes realizações, e ali morava o Rei em Himmelburg, o Castelo Celeste, com os bons súditos, em meio a muita luz, paz, produtividade, e a vestimentas mais brilhantes que a prata. Ora, decide o Rei dar aos moradores do Reino da Possibilidade de passarem ao Reino da Realidade. Para isso, realizariam o trabalho de lavrar a terra, guardar um dia ao mês para discutirem as leis, descansar uma vez por semana, e observarem os respeitos e os costumes. Onde? Em Erdheim, ou Ilha Terrestre, a meio caminho de um e de outro. Juram todos obedecerem mas quando são levados para lá, poucos realmente se prendem à promessa esquecida no meio da bruma da viagem. O resultado é o esperado: de quando em quando, dois navios aportam na ilha: o Navio do Desespero e o Navio da Esperança. O primeiro aporta na orla e sua tripulação, comandada pela Morte, sai à caça de todos os preguiçosos e maus, enquanto o seguindo ancora a uma distância da praia e manda somente uma pequena embarcação com um único tripulante, que sob a ordem do comandante Vida recolhe os bons e laborosos moradores da ilha, para levá-los ao Castelo Celeste, onde morarão com o Rei e os outros súditos. No final, sobre o tamanho das embarcações e seus destinos, o pai conclui “dizendo que a Esperança sempre procurada fica distante de nós; por isso esformçamo-nos para alcançar o que ela significa ou representa, ao passo que o Desespero está sempre próximo e nos aflige com sua presença constante. [...] Os homens bons, cumpridores dos seus deveres, leais para com os outros e para consigo mesmos, têm a seu favor o bafejo da esperança que se torna realidade, ao passo que os outros tentam inutilmente fugir ao desespero, ficando enredados pelas trevas da maldade, da ignorância, da ociosidade” (WYSS, 1812; 1972: 64-5).


Independentemente da validade e da verdade contidas nesta parábola, o que ela sinaliza é a mão rígida do religioso e cidadão que se torna líder desta colônia, além de pai de filhos que mais tarde virão a se mostrar bons cidadãos. Esta aura de rididez e de forte moral, calcadas no protestantismo, são herdadas de um século em que a literatura, quando não fundada nos princípios filosóficos e iluministas da França, da América do Norte e da Inglaterra (em parte, como é o caso de Thomas Paine, autor dos Direitos do Homem), estava amplamente fundamentada na herança religiosa puritana herdada dos idos do século XVII,contra a qual o século XVIII lutou e só se viu efetivamente livre no século XIX. Mesmo assim, Robinson Suíço é uma obra que se imortalizou porque, no apagar das luzes, os princípios de cidadania, de religiosidade e de propriedade, muito bem calcados na sociedade ocidental, são os que prevalecem e nos dirigem até hoje.

Fonte de informações sobre o autor: http://en.wikipedia.org/wiki/Johann_David_Wyss

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Volume 23 - A filha do capitão - Aleksander Pushkin


O projeto de ler e resenhar livros da coleção Clássicos da Literatura Juvenil durante este ano requer, como o leitor e a leitora deste blog devem imaginar, disciplina para pesquisar e manter o calendário de publicação semanal, e flexibilidade para procurar entender a obra em seu contexto sem que gostos pessoais influenciem tanto a experiência de leitura, embora saibamos todos que a imparcialidade é, neste caso, inexistente. Isso significa, pois, olhar para cada obra com olhos curiosos de aprender, que estejam despidos de preconceitos e que, sobretudo, eu, enquanto leitora, esteja sempre preparada para quaisquer quadros que se me apresentem durante a experiência de leitura e de pesquisa. Como é de se supor, nem sempre a experiência é lá tão boa – outras vezes, ela é realmente inesquecível --, mas bom mesmo é quando, no meio da leitura, eu me surpreendo com alguns aspectos da obra que estou lendo. Assim aconteceu com este livro do romancista russo Aleksander Sergeievitch Pushkin, publicado em 1836.

A filha do capitão, vigésimo-terceiro livro publicado na coleção, narra a história de Andrei Pietrovich Griniov, jovem nobre da cidade de Simbirsk que, nos idos de 1770, é enviado pelo pai, militar reformado, a um ermo comando da gelada Rússia para que aprendesse sobre disciplina, responsabilidade, comando e assim amadurecesse para que pudesse, mais tarde, assumir suas responsabilidades para com suas propriedades e serviçais. Tratava-se, então, da velha Rússia dos czares, e Catarina II era a soberana de tão vasto território composto principalmente de gelo e de estepes.

Ora, sucede que, a caminho de seu posto, o jovem Piotr encontra um vagabundo que lhe salva da morte por congelamento no meio da estrada e, ainda que a contragosto de seu criado, dá ao malandro o casaco de pele que vestia e paga-lhe um copo de vinho quando chegam a uma hospedaria. Durante a mesma viagem, ainda comete o deslize de, por inocência, cair na lábia de um capitão Zúrin e para ele perder, em jogos, a vultosa quantia de cem rublos.

Finalmente, o rapaz encontra-se num posto militar isolado de tudo e de todos, onde a paliçada é feita de estacas em vez de pedras, e onde contam com 130 homens maltreinados, um velho capitão que mais recebia ordens de sua esposa do que comandava, e um único canhão. Naquele inóspito lugar desenvolve-se a trama principal do romance: o jovem apaixona-se por Maria Ivánovna Mirónov, a tal filha do capitão, mas não obtém do velho e rígido pai a permissão de com ela se casar. Mesmo assim, enamorado que está, descobre que o outro oficial que ali está também gosta dela e, por ter sido rejeitado, difama-a. O resultado é um duelo, do qual ele sai ferido. Salva-se desta e recupera-se em casa do capitão, sob os ternos cuidados de Maria, para raiva e desgosto do rival Chvabrin.

Pouco tempo depois, o posto é atacado e os que resistem são enforcados, incluindo aí o capitão e sua esposa. Embora seja leal à czarina, Piotr salva-se da forca porque o chefe dos bandidos, que promove a série de assaltos às aldeias não é outro senão o malandro a quem, meses antes antes, o jovem havia dado seu casaco e pago pela bebida. A esta altura, Chvabrin já se tornou um dos mais ardentes seguidores de Pugatchev, o líder das tropas rebeldes. Dono de boa memória e reconhecido, Pugatchev liberta-o e dá-lhe salvoconduto para que ele, enquanto defensor da czarina, rume para um posto ainda não tomado.

Muitas aventuras se passam, e todas parecem girar em torno de como as tropas de oficiais russas resistiam aos ataques de Pugatchev e de como, nos encontros espaçados entre este e Piotr, eles pareciam se entender, cada qual defendendo seu ponto de vista e sua filosofia de vida, enquanto uma Rússia carente de mãos administrativas e militares fortes se via desamparada, saqueada, torturada e abandonada à própria sorte. Nesse ínterim, e por intermédio de Piotr, Maria Ivánovna, órfã, é libertada do jugo de Chvabrin e enviada para a propriedade dos Griniov enquanto o jovem oficial lutava – agora, tendo reencontrado o capitão Zúrin e passado a servir sob seu comando.

A história no final seria o feliz reencontro do casal em Simbirsk, não fosse a revolta de Chvabrin e sua vingança, realizada sob forma de acusação de Piotr como agente de ‘alta patente’ do comando do rebelado Pugatchev. Evitando a todo custo envolver aí a história de Maria e assim expô-la, Piotr está disposto a ser enviado à prisão perpétua na Sibéria e assim aconteceria se não fosse a intervenção da própria jovem órfã que, desesperada com a condenação do noivo e disposta a salvá-lo, vai à capital disposta a rogar clemência à própria Catarina II – o que, eventualmente, num romance romântico, ela acaba conseguindo fazer, e o desfecho esperado finalmente ocorre.

Aparentemente, a história gira mais em torno da vida militar e das lutas do jovem oficial Andrei Pietrovitch Griniov, permanecendo todo o restante em segundo plano. Por si, tal enredo já valeria a pena por, no estilo autêntico do romance, resgatar e exaltar a coragem e a bravura do herói que coloca os próprios interesses em segundo lugar para defender a nação – o que, em outras palavras, é o resgate de uma identidade nacional colocada em xeque no século XIX por uma sociedade que, algumas décadas mais tarde, veria seu governo, seu estilo de vida e sua economia desmoronarem na revolução bolchevique. Além disso, o relato histórico minucioso de Pushkin e sua linguagem comum valorizam e revelam ao mundo uma Rússia que era conhecida somente em seu próprio país, ao sabor das línguas e dialetos diferentes ali existentes.

A surpresa à qual me referi no início deste texto reside, porém, no fato de que o enredo da história de amor de Piotr e de Maria Ivánovna é o que na verdade constrói e justifica esta história. A jovem é caracterizada como simples e bem-educada camponesa, muito frágil e inocente, e um leitor desavisado poderia acreditar no seu papel secundário. No entanto, a rivalidade de Chvabrin com Piotr se dá por causa de seu amor rejeitado, e as reviravoltas e ataques, bem como a retomada do posto realizada pelos capitães oficiais e hussardos, é senão movida pelo desespero do jovem de livrar Maria do perigo iminente de cair nas mãos de Chvabrin.

É desta maneira que a leitura nos conduz através das perigosas travessias em território inimigo, levando-nos também a tomar conhecimento da personalidade rica de Pugatchev, o bom camarada que sabe reconhecer uma boa ação e que, ao mesmo tempo, não deixa de ser um assassino implacável. No último diálogo com o protagonista, ele explica que para ele, após tantos ataques e tanta matança, não há perdão possível, e o único caminho é a luta constante em busca do intento de se tornar czar – ou morrer tentando. A paixão e a lealdade são valores que Pugatchev conhece, e por isso permite que Piotr fique com Maria, sem desconfiar que, em última instância, essa união será a sua condenação.

Exímio escritor, Pushkin, que escreveu poemas e epopéias russas, não deixa de refletir no livro seus valores e um pouco da sua própria vida, tendo ele mesmo sido um jovem oficial rebelde e costumaz da vida na corte e tendo até mesmo morrido em decorrência de um duelo por honra de sua esposa; mas, ao batizar o romance A filha do capitão, consegue, num só movimento, juntar romance romântico, romance histórico e romance popular numa única obra onde a mulher, como tantas outras obras da literatura universal, é motivo e consequência do destino dos homens.

Fonte de informações sobre o autor:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Alexandre_Pushkin

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Volume 22 - 20000 léguas submarinas - Júlio Verne


Há três semanas, eu me surpreendi lendo Viagem ao Centro da Terra, de Júlio Verne. Novamente, o sentimento é de estupefação diante de 20.000 Léguas Submarinas, do mesmo autor, apresentado na coleção Clássicos da Literatura Juvenil. Publicado em 1870, 20.000 Léguas Submarinas é a prova concreta do gênio e da capacidade visionária de Verne, que previu, muito antes que acontecessem, as aventuras humanas de exploração da natureza em níveis antes jamais navegados – literalmente.

A narrativa é apresentada em primeira pessoa pelo professor Aronnax, especialista em ciências naturais e em mares, que é chamado pelos Estados Unidos numa caçada ao “monstro marinho” que aterroriza as embarcações. A bordo do navio Abraham Lincoln, acompanhado do sempre metódico, fiel e quieto auxiliar de nome Conselho, e de uma tripulação especializada em caçadas, Aronnax se vê em meio ao sul do Pacífico quando o navio é atacado pela fera marinha, de modo que ele, Conselho e um arpoador canadense, Ned Land, são lançados ao mar. Dali, são resgatados por aquilo que eles consideravam fera: uma embarcação submarina misteriosa, chamada Nautilus, de propriedade de um capitão ainda mais misterioso: o capitão Nemo, cuja identidade ele mantém escondida a todo custo.

Uma vez que tanto a embarcação quanto suas rotas eram segredo da humanidade, o Nautilus subia à superfície somente uma vez ao dia para trocar o ar da embarcação, e então descia ao mais maravilhoso e aventureiro mundo marítimo que um escritor já conseguiu colocar sobre papel. Embora os três fossem prisioneiros do capitão Nemo, isto é, não pudessem retornar à humanidade, nada lhes faltava: o mar provia tudo, de água e eletricidade – uma luz forte o bastante para transformar o cenário em palco de beleza, aventura e perigo --, a comida, roupa, móveis, e combustível. Esta é, pelo menos, a explicação dada pelo capitão ao professor.

Desde o primeiro instante, o leitor se vê mergulhado num ritmo que mistura aventura e descrições detalhadas de instrumentos, ferramentas e processos de funcionamento do submarino, e a cada página virada, surpreende-se mais ainda com o gênio e a imaginação de Verne. A própria ideia, a concepção, a fabricação e o formato do submarino são originais: o livro é de 1870, e o primeiro submarino surgiu em 1891. Assim, há mais do que material suficiente para intrigar e fazer com que o leitor compare o mundo de tecnologia e maravilhas com, por exemplo, o desenvolvimento das cidades americanas, que ainda estavam terminando sua colonização e viviam à base de agricultura de arado de boi e poucas máquinas mecânicas, e liam com o auxílio da luz do lampião alimentado por querosene, enquanto no Nautilus contava-se com telégrafo, eletricidade, proteção eletrocutada, cristal blindado e uma série de instrumentos de medição de latitude, longitude, temperatura e pressão do ambiente.

Ora, diante de tal ambiente verossímil, não se espera menos do que as aventuras que se seguem. Os novos habitantes do submarino vestem roupas de mergulho e escafandros para andar fora da embaração, sobre a superfície do mar, onde caçam alimento e apreciam a fauna e a flora marítimas, num conjunto de maravilhas jamais testemunhadas pelo homem. Numa volta ao mundo pelos mares, o capitão Nemo os leva a florestas aquáticas no Pacífico, ao encontro com as baleias e cachalotes, ao depositário de ostras e pérolas no Ceilão, ao Mar Vermelho, ao Canal de Suez sub-aquático, denominado de “canal árabe”, ao Atlântico, e à grande aventura do livro: ao centro do Pólo Sul, local a que chegam passando por debaixo do continente de gelo e onde ficam presos e quase morrem por asfixia. Passam pela Patagônia, visitam a Pororoca no Amazonas, e finalmente, passam pela corrente do golfo, onde têm uma luta encarniçada contra polvos, desembocando na região norte do Atlântico. Cabe ao leitor que não acompanha o mapa com a cabeça a obrigação de tê-lo ao lado para se deleitar ainda mais com a aventura.

O grande senão que transforma a aventura em expectativa de desfecho é como fazer para, eventualmente, fugir do submarino e voltar à vida que tinham. O arpoador, de nome muito sugestivo (Land = terra), é quem arquiteta a fuga dos domínios de Nemo – e, novamente, o nome é importante, porque “Nemo” vem do latim “ninguém”, e o capitão faz questão de anular-se perante a humanidade, por conta de grande e misterioso rancor contra um país que, segundo ele, lhe tirou o que tinha de mais precioso: a família e sua credibilidade. Ironicamente, Conselho é o único que não intervém e não decide sobre os planos.

Como não podia deixar de ser, os prisioneiros eventualmente se vêem livres (e não, desta vez não conto o desfecho do livro), de forma que o professor consegue, com base em suas anotações, narrar a grande aventura de sua vida que o leitor tem em mãos.

Do ponto de vista de estrutura da narrativa, há grande semelhança com o outro livro publicado na coleção: trata-se de uma expedição; o personagem principal é um professor naturalista e o assistente é calado, centrado e muito fiel; há em xeque a questão da credibilidade da aventura e do que foi testemunhado, e a necessidade de fincar, na terra explorada pela primeira vez, uma bandeira para determinar o domínio ou primazia. Assim fizeram na praia encontrada nas profundezas da terra; assim fez o capitão Nemo quando chegou ao Pólo Sul, no solstício de inverno, ao fincar a bandeira negra com o N bordado a ouro, no meio do gelo.

Este, na verdade, é um aspecto contraditório, porque ao mesmo tempo em que Nemo advoga contra a opressão e o governo, e recolhe o tesouro dos navios afundados para distribui-los secretamente aos povos oprimidos, ele faz do mar o seu domínio e do pólo sul a sua propriedade. Nesse sentido, a noção smithiana de propriedade permanece num homem sem pátria e sem história aparente. São essas brechas que o leitor consegue ver quando se depara com a história, e percebe que, por mais incrível que seja a narrativa, por mais que o discurso seja bem construído em prol de algum ponto, há sempre aspectos não contemplados – ou que se deseja esconder, em alguns casos – que “vazam”, por assim dizer, por esses detalhes. O capitão Nemo explica que o mar é senhor absoluto que tudo provê, e que o homem não deve violá-lo levianamente, e tal intenção de proteger é a primeira camada da leitura que se faz – até mesmo porque hoje, mais de um século mais tarde, a preocupação genuína de Verne, colocada na voz de Nemo, se mostra mais do que justificada pela ação do ser humano, que explora recursos naturais marítimos sem ter certeza das consequências que trarão ao planeta (e contra as quais, como eu mencionei na resenha do livro de Verne anteriormente lido, o escritor alerta mais para o final de sua vida).

Vale, ainda, uma nota sobre a questão do uso do Wikipedia como fonte inicial para que o leitor saiba mais sobre a vida do autor e de suas obras. Ainda que acadêmicos, de modo geral, desprezem-no como fonte fidedigna de informação, ele traz um material que muitos lêem e corrigem, e é resultado de colaboração em nível mundial, com uma série de ligações com matérias que interessam. No caso de Júlio Verne, vale a pena o leitor rolar a tela até lá embaixo para encontrar um vídeo documentário sobre Júlio Verne e H.G. Wells, dois escritores visionários. Assim, se não é cânone, não deixa de ser aual, diversificado, válido e – o que eu mais prezo na internet – democraticamente compartilhado.

Fonte de informações sobre o autor:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Julio_Verne

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Volume 21 - Robinson Crusoé - Daniel Defoe


Apresentado na coleção Clássicos da Literatura Juvenil como seu vigésimo-primeiro volume, Robinson Crusoé não é uma adaptação, mas uma tradução feita do livro publicado em 1719 por Daniel Defoe (1660-1731), com a inclusão, neste único romance, da continuação publicada pelo autor em 1720.

Assim, o romance conta a história do inglês Robinson Crusoé, a quem a família destinara um futuro como advogado na cidade inglesa de York, mas que o destino e a imensa, inabalável vontade de se aventurar lançam ao mar. Desde o início, o jovem se depara com aventuras de tempestades, navios partidos e resgates em alto-mar. Mesmo assim, continua sua jornada de peripécias e, por quatro anos, estabelece-se como proprietário de um engenho (uma propriedade de terras onde se plantava e refinava cana-de-açúcar) na Bahia, quando o Brasil ainda era colônia de Portugal. A cultura colonizadora e o espírito de aventura levam-no, oito anos depois de ter iniciado sua jornada de autoconhecimento e de construção da sua fortuna, a tentar a compra de escravos, na África, mas uma tempestade o assalta em pleno mar, e ele se vê único sobrevivente do naufrágio, lançado em uma ilha da América do Sul, ao largo do rio Orinoco.

Tem início ali a construção do verdadeiro caráter da personagem e da obra, que se estabeleceu como o primeiro romance inglês. Dono de uma grande força de vontade, de forte espírito religioso e moral, e de bons braços e pernas, Robinson aproveita a sorte ou a bênção de ter o navio partido fixado-se num banco de areia perto da ilha, e por dias transporta para terra firme todo o conteúdo da embarcação. Desta forma, mune-se de armas variadas, pólvora, balas, machados, ferramentas, verrumas, lonas, colchões, cobertores, redes, comida, sementes e uma infinidade de outras coisas que faziam parte da carga que ele transportava. Temeroso de ser assaltado por nativos, logo constrói uma paliçada perto de um rochedo e, dentro dela, a sua casa. Em seguida, vêm a caça e a criação de cabras, a semeadura da terra, o fabrico de queijo, a construção de móveis, e a organização de um sistema de vida que incluía exploração da ilha e alargamento da propriedade, tendo ele até mesmo construído o que viria a chamar de "casa de campo" mais para dentro da ilha.

Por vinte e cinco anos, à revelia de sua solidão e da falta de contato social, por mínimo que fosse, o náufrago constrói o que seria a gênese de uma sociedade civilizada, com criação de animais, plantações, e engenhocas que lhe serviam de instrumentos diários em sua lida com a terra e as casas, numa miniatura do que, em terras do norte, era naquela época paulatinamente construído pelos Pais Peregrinos na terra do Tio Sam: o espírito empreendedor do desbravador puritano -- que acredita na moral individual e na sua religião consigo e com Deus, a quem deve prestar contas --, estabelecia ali a construção do self-made man, ou seja, daquele que com base nas suas crenças e na sua força cristã e moral, valia-se de coragem e força física para vencer e prosperar na vida. A coisa fica mais clara quando Robinson salva um prisioneiro da morte, porque ele seria comido como resultado da vitória da tribo rival que o havia capturado e havia aportado naquela ilha com o único fim de ali realizar a matança dos prisioneiros e o festim canibalista que se seguiria à morte dos capturados. O homem sente-se tão grato pelo fato de Crusoe ter-lhe salvo e polpado sua vida, que dedica a ele eterno reconhecimento e serviço como escravo. Numa época em que o expansionismo europeu só conhecia a lei da propriedade e da cultura europeia como fonte de civilização superior, Robinson trata de nomear o nativo com um não-nome: Sexta-Feira, que tinha sido o dia em que a salvação tinha ocorrido, e em seguida, de ensiná-lo a falar sua língua, quando aproveita para ensinar-lhe a chamá-lo de Amo. Com esta ação, Robinson Crusoé estabelece a relação de hierarquia, em todos os sentidos, entre ele e Sexta-Feira: ele é o proprietário europeu da ilha e o mais velho, o outro é novo, nativo e escravo. Do ponto de vista cultural, Robinson estabelece bem o seu ponto de vista: "A sua conduta fez-me refletir e compreender que Deus deu a todas as criaturas humanas, tanto às civilizadas quanto às selvagens, os mesmos sentimentos e faculdades, a mesma inteligência, os mesmos afetos, iguais sentimentos de bondade e de noção do dever. Vi também que um canibal pode saber o que é gratidão, franqueza e lealdade, e que também ele é capaz de fazer o bem e recebê-lo com plena consciência" (DEFOE, 1719; 1972: 103). Embora as discussões de cunho pós-colonialista tenham se banhado em várias considerações sobre este contexto histórico e literário, o que me chama a atenção não é esta diferença cultural -- na verdade, enquanto observadora de um contexto como este, eu acredito mesmo que o mais óbvio seja encontrar essa realidade hierárquica, e que qualquer coisa diferente disso seria fora do natural --, mas a relação pragmática entre senhor e escravo e que, em última instância, desagua na situação dominante-dominado do sistema capitalista de produção, ainda que artesanal, pré-industrial, pois o narrador em primeira pessoa continua: "Em suma, estava tão contente com o meu novo companheiro, que passava horas ensinando-lhe a ser útil, hábil e trabalhador; e acima de tudo a me falar e a me compreender" (DEFOE, 1719; 1972: 103).

Após mais três anos na ilha, em comanhia de Sexta-Feira, período em que resgata da morte um espanhol e um nativo -- que era nada menos do que o pai de Sexta-Feira --, Crusoe resgata do mar, perto da ilha, a tripulação de um navio amotinado, tendo resgatado o comandante e rendido o restante. Fazendo-os trabalhar em prol de todos, consegue embarcar em direção a Londres, com exceção do espanhol Lope e do pai de Sexta-Feira, que haviam retornado a uma ilha próxima, onde existiam outros espanhóis náufragos convivendo pacificamente com a tribo local. A estada na Inglaterra é inquieta. Embora descubra que seu procurador tenha feito sua terra brasileira render e tenha transformado seus investimentos em muito dinheiro, nada lhe apazigua o coração, a não ser a delicada moça Isabel, com quem se casa e tem três filhos. Durante um tempo, estabelece-se como fazendeiro e produtor rural, porquanto o ócio seja visto como nocivo ao físico e à alma. Dono de uma personalidade empreendedora, logo transforma em fortuna o dinheiro investido no campo, a ponto de mandar os filhos à capital para serem educados. Porém, é em Londres que encontra seu infortúnio: vítima de doença galopante, sua esposa morre, e nada lhe cai bem. A paisagem inglesa é triste e nublada, e só se sente feliz e revigorado quando decide embarcar com seu sobrinho, a quem tinha emprestado dinheiro para que se tornasse imediato de um navio, rumo à sua ilha, onde dez anos antes, ao sair de lá, havia deixado três amotinados ingleses e uma carta para Lope, no caso de este voltar com o pai de Sexta-Feira e com os outros espanhóis. Para esta empresa, compra uma imensa carga de víveres, animais, ferragens de todos os tipos, tecidos, e leva consigo artesãos, alfaiate, marceneiros, e construtores de moinhos e outras engenharias que colocariam a ilha para funcionar de fato, organizada como uma sociedade, agora que possuía ele a permissão legal do governo inglês de se tornar responsável pela colonização da ilha. No meio do caminho, resgata um navio avariado e, dele, um jovem, uma criada e um padre francês. Todos seguem para a ilha, inclusive Sexta-Feira, que finalmente se vê livre da desolada terra inglesa.

O que encontram na ilha os supreende: não só Lope retorna com os espanhóis, como coloniza e governa admiravelmente a ilha e os colonos, estabelecendo convivência pacífica, à custa de muita paciência e perseverança, entre espanhóis, ingleses, portugueses e indígenas. A propriedade tinha sido ampliada, bem com as criações e plantações, e cada colono tinha agora suas terras, seus deveres particulares e comuns, e seus escravos para cuidarem de suas terras. De modo geral, é possível até mesmo comparar religiosamente a obra de Defoe com a Bíblia: trata-se, como parece, de uma nova Canaã, onde o povo resgatado da fúria do mar e da penúria da sobrevivência e da violência se organiza sob o regimento de um civilizador e ali convive pacificamente, de forma que os novos trabalhadores e bens materiais são adendos muito bem-vindos e um padre só vem coroar a glória divina, para pôr ordem na casa, casando os espanhóis com as nativas com quem tinham se juntado, e batizando os mestiços destas uniões, catequizando-os e ensinando-lhes a ler.

A obra ainda narra a visita de Crusoé ao Brasil e sua viagem à África e de volta à Inglaterra, passando pela China, pelo Tibete, pela Rússia, pela Espanha e pela França, até chegar em Dover e dali a Londres -- viagem durante a qual pereceu o fiel Sexta-Feira, vítima de ataque de indígenas ao navio em que estavam, ao sul da África --, mas é das aventuras deste novo homem, retratado nesta narrativa que expõe o lado pragmático do europeu civilizador e puritano que ajudou em grande parte a moldar o mundo como conhecemos hoje, e a definir os rumos da literatura inglesa, abrindo caminho para o sucesso literário estrondoso com crianças (pois da leitura de clássicos como este e como Gulliver, que se inspirou em Crusoé, é que adveio, em última análise, a literatura infantil e juvenil britânica), que jamais a humanidade vai esquecer, porquanto dele sofra, em alguma medida, os fortúnios e os infortúnios de ser o que é.

Fonte de informações sobre o autor: http://pt.wikipedia.org/wiki/Daniel_Defoe