Coleção Clássicos da Literatura Juvenil

Apresentação e resenha dos livros da coleção editada pela Abril Cultural entre 1971 e 1973.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Volume 41 - O máscara de ferro - Alexandre Dumas


Ao longo da coleção Clássicos da Literatura Juvenil, a França é um dos países cuja história cultural e política tem sido mais explorada e contada aos jovens leitores. No entanto, parece-me que nenhuma das obras lidas até então mostram-na mais realisticamente do que O máscara de ferro, de Alexandre Dumas, pai -- e digo isso levando em consideração O conde de Monte Cristo, Os três mosqueteiros e Os irmãos corsos, outras obras suas que foram publicadas na coleção.
É bom que se entenda, porém, o sentido de realidade aqui empregado. Não falo de uma história que narre um acontecimento real, mas emprego o sentido de "realidade" para falar do dom que o narrador tem de fazer uma história baseada em dados históricos parecer muito verossímil, dado a ambientação histórica e política, bem como ao caráter de intriga e de poder ali envolvidos, como vamos ver.
O livro tem início, na verdade, com uma breve explicação sobre o caráter fictício da obra, mas isso é o que menos importa quando o leitor mergulha no universo da trama político-religiosa criada por Dumas. Fazendo uso do universo literário dos mosqueteiros, criado anos antes, o autor coloca nas mãos de Aramis, agora um fidalgo que se tornou bispo, a possibilidade de mudar o destino da França, porque ele é portador de um terrível segredo: o de que o rei Luís XIV possui um irmão gêmeo, preso na Bastilha tão-somente pelo fato de existir e, portanto, de colocar todo o reino e a união política da França em jogo.
O segredo de Luís XIII e Anna D'Áustria, pais dos gêmeos, torna-se arma nas mãos do fidalgo que, graças a isso, consegue primeiramente tornar-se o sucessor do prelado da Ordem de Jesus, uma companhia bem no estilo dos templários que, como tal, detém o poder de erigir um rei ou de destroná-lo. De posse dessa informação, usa sua posição de bispo e suas relações políticas com o governador da torre da Bastilha e de um superintendente para criar a situação perfeita para trocar os irmãos de lugar. Antes, toma o cuidado de ensinar a Filipe, o preso, sobre cada membro da corte e dos rituais de seu irmão Luís e, então, consegue realizar a troca.
O interesse de Aramis é, sobretudo, político: deseja tornar-se conselheiro-mor de Filipe, tal como Richelieu havia sido para Luís XIII, e com isso pretende chegar a papa. A forma como o autor vai aos poucos construindo a trama prende o leitor, ainda que numa adaptação infanto-juvenil que não ultrapassa as 150 páginas com ilustrações. Paulatinamente, o leitor começa a entender que o fato de Luís XIV ser um rei fraco, vaidoso e injusto para seu povo e seus leais súditos da corte não constitui o motivo autêntico para a troca, mas o desejo maior de governar por detrás, como se Filipe fosse um títere nas mãos de Aramis -- o que, certamente, desaponta o leitor, já acostumado com a ideia heróica e leal dos mosqueteiros. Tal desapontamento é expresso, oportunamente, nas desconfianças e no lamento de D'Artagnan, que vê seu amigo Porthos envolvido na traição real sem que se dê conta do que realmente está fazendo, porquanto Aramis o usa para realizar suas ações sem dizer-lhe exatamente a quem estão transportando e para qual finalidade, quando sorrateiramente faz a troca dos gêmeos.
A tentativa teria tido sucesso se Aramis não tivesse contado com a parceria e a ambição de Fouquet, o superintendente. Para seu arrependimento, o amigo revela-se um fiel servidor de Luís XIV, ainda que este não goste dele e o deseje prender por intrigas outras que fazem parte da trama secundária. Sendo assim, Fouquet lhe responde claramente ser contra o intento já realizado e, após dar uma dianteira para a fuga de Aramis e de Porthos, vai à Bastilha e liberta Luís XIV. Este é o momento em que, furioso, o rei toma conhecimento da existência do irmão e que ordena a colocação de uma máscara de ferro, para que jamais possam novamente ter conhecimento da semelhança e da ligação de ambos.
Diferentemente do que ocorre nos filmes, nas séries e novelas e em outras adaptações infantis, o livro não traz bom termo aos mosqueteiros e ao príncipe Filipe: esta adaptação, mais fiel ao original, demonstra a falta de reconhecimento de Luís XIV para com seus fiéis súditos, mandando prendê-los; Filipe não se livra da máscara; e os mosqueteiros se vêem separados para sempre, numa clara demonstração que, em nome do poder, o homem, ainda que dono de uma cultura elevada, de status social e financeiro e de um bom coração, corrompe-se e, tão alto quanto sobe, acaba por desmoronar.
Fonte de informações sobre o autor: http://pt.wikipedia.org/wiki/Alexandre_Dumas,_pai

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Volume 40 - Heidi - Johanna Spyri




Heidi é uma das poucas obras alemãs dedicadas ao público infantil e juvenil que figura na coleção Clássicos da Literatura Juvenil. Escrito por Johanna Spyri e publicado em 1880, a história trata de uma garota órfã que vai morar com a tia mas que, por falta de recursos financeiros, acaba sendo enviada à casa do avô, nos alpes suíços. Ali, conhece um outro estilo de vida e faz amizade com Peter, o pastor de cabras.

Dos cinco aos oito anos, Heidi não só cresce feliz e sadia, no ambiente pastoril de uma Suíça alpina oitocentista, em um casebre pobre, mas distribui sorrisos a todos a quem conhece e principalmente amor ao avô que, antes, havia passado anos e anos amargurado, de mal com o vilarejo, cujos habitantes nada faziam além de suposições e fofocas a seu respeito. Isso porque, vindo do estrangeiro com um filho pequeno, não se comunicara com ninguém, e o isolamento fôra-lhe prejudicial após a morte de seu filho.

Aos poucos, Heidi -- que, na verdade, chama-se Adelaide, como a mãe falecida -- conquista o avô, mas ela se vê repentinamente presa nos planos de sua tia Deti, que volta para buscá-la e colocá-la como pequena dama de companhia de Clara, uma menina de doze anos que mora em Frankfurt e é paralítica, e cujo pai é um viúvo muito rico que raramente fica em casa. O período de conhecimento da cidade grande e do processo de adaptação de Heidi tem seus momentos engraçados, na fala de um narrador onde tudo nos alpes é grandioso e muito iluminado, mas onde tudo na cidade é triste e sombrio, numa construção de atmosfera feita muito claramente para construir contrastes de ambientes. Embora Heidi goste muito de Clara e eventualmente aprenda com ela e com a avó dela muitas coisas boas e práticas, Heidi definha silenciosamente de saudade dos Alpes e de seus amigos e avô, até que o pai de Clara retorne de uma viagem de negócios e perceba o que está acontecendo com a menina.

Uma vez de volta às montanhas, Heidi visita seus amigos e leva-lhes presentes. Dentre eles, o maior é a habilidade de poder ler para a avó de Pedro, porque a velhinha, já cega, sente falta dos hinos religiosos. Na esteira da formação cristã protestante alemã, a autora constrói a trama, e assim a história preferida de Heidi é a do filho pródigo, numa clara alusão ao avô.

Do mesmo modo, o processo de alfabetização, tal como narrado, faz bastante jus ao que conhecemos dos métodos dos séculos XVIII e XIX, antes da grande reforma em prol das crianças pobres. Aqui, qualquer vadiagem ou negação a aprender, por qualquer que seja o motivo, é ameaçada. Há versos que ensinam o alfabeto na base da ameaça, e esse modelo era na época tido como um grande modo de ensinar às crianças.

O terceiro momento é reservado à série de visitas que o médico da cidade, a avós de Clara, o api de Clara e a própria Clara fazem aos Alpes um ano após o retorno da menina às montanhas. Ali, por conta do extremo cuidado do avô para com a mocinha e também devido ao ciúme de Pedro, que já não pode ficar com Heidi só para si durante od ia inteiro, a cadeira de rodas é empurrada para despencar morro abaixo, numa tentativa de fazer com que a menina vá embora. O feitiço, porém, vira-se contra o feiticeiro, e Clara conta com a ajuda de Pedro e de Heidi para começar a andar.

Nesse romântico claramente instrucional, o avô reconcilia-se com Deus e com a sociedade, a paralítica volta a andar, o pai que perdeu uma filha ganha a companhia de outra criança, e Heidi se vê financeiramente amparada pelo médico e pelo pai de Clara. Costurando a trama vem a figura da avó de Clara, que ensina o poder do amor, da fé e do perdão de Deus para com seus filhos. É isso o que este romance, que inaugura uma categoria no gênero infantil e juvenil, faz: prende-nos a um sonho já não possível de cumprir, e onde a realidade é mais perfeita do que nós mesmos esperamos. Se, de alguma forma, ela nos resgata da realidade crua e fria de hoje, com tantas opções e sem ninguém em quem confiar para deixar a porta de uma casa aberta, ela cumpre seu papel histórico e ideológico.

Fonte de informações sobre a autora: http://pt.wikipedia.org/wiki/Johanna_spyri

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Volume 39 - Winnetou - Karl May

Karl May não é um nome que inspire conexões imediatas para muitos leitores. Não é sequer um nome que nós, brasileiros, tenhamos comumente estudado em algum momento de nossa escolarização. Para aqueles que, no entanto, tenham sido guiados em suas leituras pela busca de aventuras, o nome deste alemão deve trazer à tona memórias de histórias de encarniçadas lutas indígenas em nome da preservação de seus valores, ou exóticas histórias no oriente.

Antes de escrever histórias no último quartil do século XIX, quando a Alemanha proliferava seu desenvolvimento literário, o jovem alemão, filho de uma família de tecelães com numerosos irmãos e muitas mortes em decorrência da pobreza e da falta de condições de cuidados com suas crianças, já tinha se formado professor, tido seu título cassado em consequência de roubo, e anos e anos de prisão e trabalhos forçados por conta de seus atos ilegais, até que tivesse sua alma, por assim dizer, resgatada por um missionário que visitava os detentos nas cadeias.

De ladrão a homem recuperado, Karl May tornou-se escritor e, aproveitando-se da febre literária e do desenvolvimento alemão do segundo Reich, escreveu inúmeras histórias que desejavam resgatar para os europeus o espírito romântico de bravura e heroísmo, em terras indômitas, para jovens leitores, ávidos por conhecer um lado da história humana a que agora, diante da urgência em destacar a pátria e a formação de mão-de-obra, já não viviam.

Desse modo é que a coleção Clássico da Literatura Juvenil apresenta Winnetou, o jovem guerreiro, cacique dos apaches, que o narrador em primeira pessoa diz ter sido o último dos grandes e honrados guerreiros indígenas dos Estados Unidos. Nesta adaptação de Maria Aparecida P. de Freitas, um alemão que viaja aos Estados Unidos em busca de aventuras no oeste a ser desbravado acaba se tornando preceptor (professor de crianças e jovens) de uma família alemã instalada há alguns anos no território, quando conhece Sam Hawkes. Este, embora muito maltratado pela vida no oeste, afeiçoa-se a ele e o treina, sem que este saiba, para a vida no território hostil. É devido à sua grande habilidade com o manejo de armas brancas e de fogo e de sua grande força que o jovem alemão se torna conhecido como Mão-de-Ferro, e logo no início da narrativa, quando está em missão de demarcação de terras para a construção de uma estrada de ferro, que vem a conhecer o cacique Intschu-Tschuna e seu valoroso filho Winnetou. Numa tentativa de estabelecer a paz entre brancos e índios, o jovem e seu amigo tentam conversar com os índios e com Klekih-Petra -- ou "pai branco" --, um senhor já idoso e também alemão que havia se radicado em terras indígenas, em defesa dos povos de pele vermelha contra a sanha branca de invadir suas terrase pilhar seus bens. Ocorre, porém, de haver desavença e de um branco matar o senhor alemão, e a guerra se estabelece. Em meio a isso, Intschu-Tschuna e Winnetou são capturados e Mão-de-Ferro os liberta, e depois de mais aventuras, o branco acaba tornando-se irmão de Winnetou.

A aventuras, narradas num estilo episódico, é repleta de lutas, perseguições, capturas, libertações se reféns e justiça feita à bala e à faca. Nesse ínterim, morrem Inschu-Tschuna e sua filha, Nscho-Tschi, tida como a bela flor da tribo. À morte do pai e da irmã, Winnetou segue na captura do assassino, o branco Santer, mas nas diversas vezes em que se vê à sua caça, este se lhe escapa, pois conta também com a ajuda da tribo dos kiowas, a quem presta favores.

O livro apresentado ao leitor é na verdade uma adaptação da somatória dos quatro volumes publicados por May com o nome Winnetou, e segue com muitas outras aventuras, que envolvem desde a ida do alemão a Nova York e seu serviço como detetive, até suas idas à Alemanha e ao seu retorno ao território do oeste, onde ele se envolve em resgates de trens assaltados por bandos de indígenas liderados por bandidos brancos, até a ajuda oferecida por ele e pelo irmão índio a uma colônia cristã de alemães radicados no oeste. É, aliás, durante o conhecimento que trava com os colonos de Helldorf que Winnetou decide converter-se ao cristianismo, comovido que se vê diante do cântico da "Ave-Maria" e da crença que tem num Pai celestial de amor e de união, e não de guerra, como é o Grande Espírito guerreiro protetor dos indígenas. Após tantas aventuras, é justamente ao resgatar os colonos de Helldorf das garras de bandidos brancos que Winnetou tomba, baleado pelas costas. Morre ao ouvir o cântico da santa, mas antes faz o escritor Carlos -- porque o narrador revela-se como Carlos, escritor (tal como o autor, o que significa que a personagem é um alter ego do autor) -- prometer que iria ao túmulo de seu pai e de sua irmã e, perto deles, desenterraria o testamento a ser lido para a sua tribo apache. É durante esta aventura que Carlos, o Mão-de-Ferro, é capturado por Santer e pelos kiowas, mas liberta-se e vai atrás do mortal inimigo de Winnetou, na jura de vingar as mortes dos amigos indígenas e de recuperar o testamento que Santer consegue roubar. Eventualmente, é claro, ele o alcança e Santer, vítima de sua própria cobiça e insensatez, morre, levando consigo o testamento dos apaches e o segredo dos tesouros em ouro e pedras preciosas que Winnetou revelava na carta enterrada, e de que os apaches só faziam uso quando iam às cidades dos brancos e tinham a necessidade de pagar pelo que queriam ou precisavam. "Lembre-se, meu irmão, o brilho e dos diamantes é o próprio fulgor da morte que, se não destrói o corpo, arrasa o espírito!", é o que diz Winnetou a Mão-de-Ferro antes de morrer, numa mostra da visão romancizada do autor, segundo a qual o indígena é puro, corajoso e sempre digno.

Nesta história, ao mesmo tempo em que se deleita com a série de aventuras, o leitor se depara com a linguagem rebuscada, típica ainda do início do século XIX, e com um conhecimento topográfico, climático e de nações e tribos indígenas que com muita propriedade dão o caráter verossímil à narração. Entretanto, curioso é saber que, quando o livro foi lançado (primeiro em episódios publicados em magazines e, depois, em edições de livros), Karl May não havia sequer pisado em solo norte-americano, quanto mais conhecer tribos, aventureiros e desbravado terras. Em sua experiência literária, tinha-se valido de suas leituras das obras de escritores como James Fenimore Cooper (que apareceu nesta coleção com O Último dos moicanos), bem como de livros de história, mapas e notícias de jornais para constituir o que se torna uma narrativa envolvente e muito bonita da figura do índio e de seu valor na nação americana. Soma-se a esta pesquisa a criatividade de May, e então o leitor tem em mãos esta obra que pode não ser muito lida hoje, mas inspira ainda a ideologia americana de nação e a crítica ao falso ideologismo, e que é, por exemplo, lembrada por pessoas do calibre do cineasta Quentin Tarantino, que cita Winnetou em Bastardos Inglórios, numa mostra de que o tema é atual e sempre ideológico, esteja ele investido ou não de um caráter romântico.

Fonte de informações sobre o autor (em inglês): http://en.wikipedia.org/wiki/Karl_May

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Volume 38 - O pequeno Lorde - Frances Hodgson Burnett

Frances Hodgson Burnett é, nos dias de hoje, mais conhecida por sua obra O jardim secreto, que foi transformada em filme nos anos 1990, mas sua fama atravessou os mares quando ela publicou O pequeno lorde, que a coleção Clássicos da Literatura Juvenil apresenta aos leitores em seu trigésimo-oitavo volume.

Publicado pela primeira vez em 1886, o livro conta a história de Cedric Errol, o menininho de sete anos órfão de um pai que era o terceiro filho de um conde inglês, e de uma mãe americana, e que de repente vê sua vida mudada porque o avô, a quem jamais havia conhecido, manda buscá-lo nos Estados Unidos para que viva com ele e aprenda sobre sua linhagem e sua importância, e passe a ser o Lorde Fauntleroy, dono das terras do avô quando este viesse a falecer.

O avô era, na verdade, movido pela solidão e pelo orgulho de sua linhagem, e não por amor. Solitário, ranzinza e amargurado, tendo morrido os três filhos, chama o neto e a mãe, mas recusa-se a conhecer esta, por acreditar que os americanos não passavam de gente baixa, sem educação e cuja personalidade era carregada de interesse e de ganância. Não sabia ele que não só sua nora era a mais digna, educada e recatada das damas, mas incutia no filho o orgulho de ser filho de seu pai e o amor pela virtude, pela verdade e pela caridade, além de um otimismo sem fronteiras. É assim que, vendo-se dono de uma pequena soma de dinheiro ainda nos Estados Unidos, antes de partir, Cedric ajuda a seus amigos, o vendeiro republicano, a família de sua ama de leite, e o engraxate Dick, de quem é também amigo, mas nada compra para si.

O amor e a natural expansão de Cedric, que desconhece o verdadeiro motivo pelo qual o avô o leva à Inglaterra pelas mãos do advogado da família, acabam não só por desarmar o velho homem de sua amargura e de sua descrença na humanidade, mas por curá-lo e também por distribuir com justiça a ajuda aos mais empregados necessitados do condado. Eventualmente, o velho lorde acaba conhecendo sua nora e reconhecendo que ela era a melhor das damas. Entendendo que o neto, com quem morava, jamais deixaria de amar a mãe por mais que se lhe dessem ou com ele estivessem (pois o avô tentara, de primeira, comprá-lo com brinquedos e livros), o homem convida a nora a morar com eles no castelo, posto que ela morava nas propriedades, próximo ao castelo desde que se mudara para a Inglaterra, mas não com o filho.

Não poderia, contudo, deixar de haver o contraponto da felicidade e da lição de vida que o pequeno ensina a todos, espalhando o amor, a justiça e a caridade. A certa altura da história, quando já era reconhecido por todos do condado como o pequeno lorde Fauntleroy, Cedric vê seu posto ameaçado por um repentino herdeiro, que seria filho do primogênito do velho conde. A situação viria a tomar proporções de manchetes internacionais e, assim, nos Estados Unidos, seus amigos saberiam do drama, e teriam condições de ver, pela foto dos jornais, que a mãe do suposto herdeiro era senão a ex-cunhada de Dick, pilantra de marca maior que de fato havia se envolvido com o filho do conde, mas cujo filho era na verdade resultado de sua relação com Ben, irmão de Dick. Em tempo, a farsa é desmascarada e a paz passa a reinar nessa história escrita para crianças.

Há, nesta história de amor familiar, dois aspectos que se pode comentar. O primeiro deles é, certamente, a questão política da rivalidade entre os valores históricos ingleses versus os valores de igualdade pregados pela república norte-americana, aqui colocados por uma autora que havia nascido inglesa e que, ainda jovem, havia se mudado para os Estados Unidos. No início, incute a personagem do vendeiro com toda a gana contra os ingleses e seus preconceitos contra a linhagem, a exploração, a desigualdade entre os britânicos, quando em seu país todos tinham chances iguais e poderiam, se quisessem, candidatar-se a presidente. Porém, com o desenrolar da história, conforme Cedric se inteirava de sua linhagem e da realidade de sua posição e das famílias que viviam no condado, ele ia entendendo que a desigualdade e a injustiça dependiam principalmente da personalidade e do modo de governar, e não do mero fato de ser inglês ou de se estar na Inglaterra. E, sendo a história produto do trabalho de uma filha da era vitoriana, em que o expansionismo inglês estava ainda a toda na Ásia, não poderia ser diferente.

O segundo aspecto que chama a atenção para este livro é o modo como o caráter da personagem Cedric Errol, o pequeno lorde Fauntleroy, é construído, bem como o enredo. Digo isso porque, ao ler a história, não pude deixar de estabelecer relações óbvias com Pollyanna, de Eleanor Holdgman Porter, publicado em 1911 e cuja história fala de uma órfã que vai morar com a amargurada e reclusa tia Polly, uma mulher rica que, à custa da inocência, do amor e da crença de sua sobrinha na justiça e na caridade, passa a fazer caridade e a atender a diversas famílias da região, para finalmente perceber que se torna uma mulher completamente diferente e mais feliz, por amor da sobrinha, sempre tão otimista e querida por todos, e que a transforma pouco a pouco num ser cujo amor e cuja compaixão se tornam evidentes. Imagino, na verdade, que haja estudos comparativos de ambos os enredos, e embora os contextos sejam diferentes e não haja a situação política em Pollyanna, obras como essas -- inspiradas por Frances H. Burnett, são ainda hoje fundamentais para a formação da criança, já que a necessidade de formar pessoas justas, amorosas e caridosas, independentemente de onde vivam, jamais morre.


Fonte de informações sobre a autora (em inglês): http://en.wikipedia.org/wiki/Frances_Hodgson_Burnett