Coleção Clássicos da Literatura Juvenil

Apresentação e resenha dos livros da coleção editada pela Abril Cultural entre 1971 e 1973.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Volume 49 - O Capitão Fracasso - Théophile Gautier

O Capitão Fracasso é um desses livros para os quais o leitor olha na estante e pensa que o tempo dedicado a ele não vale a pena. Mas, como diz o ditado, não se deve julgar um livro pela capa -- ou, em última instância, pelo título.

Escrito em 1835 por um seguidor ávido de Victor Hugo, o penúltimo volume da coleção Clássicos da Literatura Juvenil cumpre de forma eficaz o papel de distrair a burguesia das questões políticas que assolavam a França naquela época, cinco anos após a Revolução de 1830. Já discorremos, ao longo das resenhas apresentadas, sobre a situação francesa do século XIX e o medo que a referida classe tinha de ver o sangue derramado aos litros, como ocorrera durante a Revolução Francesa. Por isso, um romance de capa e espada como este viria bem a calhar, embora só viesse a ser publicado em 1863.

Aqui, o narrador nos leva ao reinado de Luís XIII e, com um incrível poder descritivo que dá cor, textura, temperatura e cheiro ao ambiente, faz-nos entrar no território lúgubre e abandonado do castelo do Barão de Signognac, nobre decadente que descende de Palamède de Sigognac, um dos nobres que fielmente serviram a Carlos Magno, e cuja dinastia se viu à míngua devido à má administração dos bens de seus descendentes. Ali, na região da Gasconha, o jovem barão é um solitário que se isola da sociedade e que, por orgulho, não procura outros nobres ou o rei para pedir-lhe auxílio. Assim, vive dentro dos limites do muro do castelo desgastado pelo tempo, pelos cupins, pelos ratos e pelas intempéries, na companhia de seu cachorro Miraut, de seu gato Béelzébuth, de seu cavalo Bayard e do criado Pierre, ex-professor de esgrima que se dedicara a criar o nobre quando os pais dele vieram a falecer.

A rotina do jovem é alterada quando, numa noite, uma trupe de comediantes bate à sua porta em busca de abrigo. Estes, vendo a miséria e a solidão do rapaz, convidam-no para que os siga a Paris, para onde se dirigiam. Imbuído que estava da secreta vontade de sair da solidão e ainda mais da paixão pela jovem e recatada Isabelle, uma das quatro atrizes, o Barão de Sigognac parte em busca de aventuras com a trupe.

A primeira parte do romance poderia ser considerada centrada no estreitamento de laços de amizade do jovem com a equipe formada por Tirano, chefe da companhia, Blazius, ex-diretor de colégio que se fora suspenso devido ao alcoolismo e também conhecido sob a alcunha de Pedante, Scarpin, ator também experiente, Léandre, o galã das peças, Matamouros, o bobo da corte, e as atrizes: Léonarde, a matrona; Zérbine, a morena sensual e provocativa, Séraphine, que sente constante inveja de Zérbine, e Isabelle, virginal e recatada, filha de uma grande atriz trágica e de um misterioso nobre. Neste período, o Barão de Sigognac não apenas compartilha o prazer da boa mesa e da recepção após os espetáculos bem-sucedidos, como também a miséria e o perigo da morte pelo frio em meio às tempestades de neve. É, a propósito, em meio a uma nevasca que morre Matamouros, já velho e franzino, e é quando o rapaz se oferece como substituto para o papel que o ator tinha na farsa que encenavam nas cidades que percorriam. Para proteger a nobreza e a ascendência, adota o soturno título de Capitão Fracasso. É também nesse período que entram em cena as figuras do ladrão violento Agostin e Chiquita, sua franzina companheira adolescente. Não tendo dado certo um bote sobre a companhia teatral em meio à estrada deserta, Agostin é escorraçado por Tirano, e Chiquita confessa à Isabelle que tinha se enamorado de seu falso colar de pérolas “da cor da lua”, ao que a jovem, numa atitude de bondade e desprendimento, tira o colar do próprio pescoço e o coloca em volta do pescoço da menina.

Ocorre que, na cidade de Poitiers, quando estavam hospedados numa das hospedarias mais populares e bem frequentadas da região, a situação se complica, pois Isabelle passa a ser alvo das investidas do Duque de Vallombreuse, a quem demonstrações de desprezo e frieza atiçam a insistência perante a mulher enamorada. Vendo que nem bilhetes e nem joias a compram, ele resolve ir em pessoa ao ensaio de uma das peças para, ousadamente, investir num contato, mas é flagrado por Sigognac. Sem saber que este é na verdade um nobre, manda que os criados lhe dêem uma surra mas este, ajudado por Tirano e por Scarpin, derrota os enviados de Vallombreuse. Em resposta, envia um nobre como emissário e desafia o duque para um duelo, e o vence facilmente.

A briga dos dois vai ficando cada vez mais séria à medida que a trupe se desloca para Paris e o duque, cego de paixão, manda segui-los e paga para que não só raptem Isabelle, mas matem Sigognac. Ambas as tentativas são uma vez frustradas e, conforme a trama se desenvolve, mais personagens do submundo são apresentados ao leitor. Uma figura, no entanto, torna a aparecer em momentos essenciais do enredo: Chiquita, a espanholinha, que dentro do seu alcance, faz de tudo para proteger Isabelle. A personagem é, na verdade, uma das mais fascinantes do romance de Gautier: dona de uma personalidade ímpar, Chiquita desconhece classe, requinte ou palavras bonitas e fluidas para construir o seu discurso, mas seu olhar penetrante e sua sinceridade a tornam a mais autêntica das personagens do livro, e sua coragem e seu amor por Isabelle e Agostin a tornam, se é que possível, mais bela do que Zérbine ou Séraphine. É graças a ela que Isabelle é resgatada por Signognac e pela trupe de atores, quando Vallombreuse finalmente consegue armar um esquema para distrair os atores e sequestrar a moça. Num segundo duelo de espadas, Sigognac fere seriamente o duque e este, entre a vida e a morte, descobre que Isabelle é sua irmã, tal como o pai, ao chegar ao castelo após o confronto, lhe revela.

Como em todo romance leve e feliz, Vallombreuse se recupera e torna-se irmão amoroso e filho dedicado, Isabelle casa-se com Sigognac e, em segredo, restaura o castelo e compra de volta as terras que haviam sido vendidas ao longo das gerações, e o Barão de Sigognac, agora um governador de província, encontra enterrado, no terreno de seu castelo, um cofre repleto de ouro, joias e títulos que um antepassado havia enterrado há mais de seis séculos, antes de viajar para participar de uma cruzada da qual não voltara.

A leitura do romance vale, por si, pela clássica aventura de capa e espada, e pelas referências históricas e literárias que traz, como a descrição pictórica de Paris e dos vagabundos que vagavam pela Pont-Neuf, bem como das execuções na praça de Grève, ou os títulos de obras e de escritores famosos à época, como Ronsard e Hardy. Porém, mais do que referência ou a maestria literária de saber misturar teatro e romance tão bem como só um escritor de teatro poderia fazer, o autor é hábil para colocar, nas palavras dos atores, palavras de humor e cenas da vida pitoresca, como quando chegam a uma estalagem na qual o dono engrandece tudo quando na verdade quase nada tem a oferecer, bem como a crítica feroz à religião, como quando Tirano explica que atores não podiam ser enterrados em campo-santo (cemitérios de igrejas) porque a Igreja Católica proibia, por considerá-los perdidos. Esta era, aliás, uma das críticas mais ferrenhas de Gautier: a de que religião nada tinha a ver com a arte e, talvez devido ao tom crítico e cínico muito apropriadamente colocado nas falas dos atores, O Capitão Fracasso tenha sido publicado somente quando a atmosfera política estivesse mais propícia a tal leitura, numa prova de que até mesmo nas mais inocentes e convidativas leituras podemos encontrar reflexos da sociedade.

Fonte de informações sobre o autor: http://pt.wikipedia.org/wiki/Th%C3%A9ophile_Gautier