Coleção Clássicos da Literatura Juvenil

Apresentação e resenha dos livros da coleção editada pela Abril Cultural entre 1971 e 1973.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Volume 50 - Tom Jones - Henry Fielding

Imagine a seguinte situação: você, juiz benquisto numa comunidade rural, rico e bonito, solteiro, já na meia-idade, e conhecido tanto pela bondade quanto pela justiça com que pratica sua profissão, chega em casa depois de muitos meses fora, resolvendo negócios, e encontra na sua cama, sob os lençóis, um bebezinho de dias de idade. Assim começa a história de Tom Jones – ou, para referir-me ao nome completo do livro, A História de Tom Jones, um Enjeitado.  
A última narrativa trazida ao leitor pelos editores da Coleção Clássicos da Literatura Juvenil foi magistralmente adaptada por Clarice Lispector, cujo trabalho reduziu o volume originalmente publicado em 18 “livros”, em 1749, mas que habilmente manteve o espírito político, moral e eminentemente iluminista da obra de Henry Fielding. Nesses livros, o autor intercala a narrativa com suas observações acerca da natureza humana, do processo de composição literária, da sociedade da época e dos problemas vividos na Inglaterra com a história do personagem Tom, no que hoje sabemos se tratar de um romance de formação (o termo técnico, em literatura, para este tipo de romance é Bildungsroman).
Tom é, então, encontrado na cama do juiz, que se enternece e julga que alguma alma desesperada o tenha deixado ali na esperança de que o bom homem se compadecesse e o tomasse sob sua tutela. Se nos dias atuais uma situação dessas gera especulação, é de se imaginar o que, em tais circunstâncias, passa a ser cogitado na província: que, certamente, trata-se de um bastardo do próprio juiz e que este disfarça para que possa cuidar do filho sem lhe reconhecer a paternidade. A este mexerico contribuem as empregadas das casas das gentes ricas e dos pobres, e da própria casa do juiz Allworthy – notemos o nome dado ao personagem, mais como reconhecimento de suas qualidades (worthy – “merecedor”, numa tradução livre”, e all = todos; tudo; portanto, “merecedor de todas as boas coisas que possuía e ao bom espírito que mantinha).O juiz o cria como filho, junto à Bridget, irmã solteirona que, logo no início da trama, casa-se com um provinciano que vê ali chance de enriquecer, e de cuja união resulta o nascimento do vilão Blifil.
Tom Jones cresce sob a alcunha de filho bastardo da aldeã Jenny Jones – pois logo se procedeu à caça de alguém que assumisse a “culpa” por ter dado à luz a um filho não reconhecido – e de um mestre de escola, que ensinava latim a meninos e para quem Jenny havia trabalhado. Durante o crescimento, dá muitas provas do seu bom caráter e do seu espírito elevado. Aqui e ali, o narrador pontua de forma bastante irônica sobre como ele é vítima do ciúme, da inveja e das intrigas dos tutores que cuidam da educação de Blifil e de sua educação, bem como aproveita para explicar que ao espírito reto basta a noção de religiosidade, de moral e de disciplina, e então uma escola (que, naquela época, era artigo de luxo reservado aos filhos de nobres e aristocratas) tornar-se-ia desnecessária. De fato, o narrador faz de Tom a prova viva de sua defesa, ao longo das aventuras.
Se, por um lado, Tom é bondoso, bonito, forte como um touro e muito inteligente e sábio, por outro é estouvado e faz tudo com muita paixão, e por isso não mede as consequências do que faz. É assim que ele se vê mentindo ao juiz sobre seu envolvimento numa caça ilegal de animais na propriedade do vizinho, o Sr. Western, somente para proteger o guarda-caça que estivera “roubando” carne para alimentar a própria família, e depois vende seu próprio cavalo para custear a vida da família do guarda-caça, já que este fora despedido quando o juiz descobriu que o rapaz havia mentido para protegê-lo.
Nessas idas e vindas, Tom se envolve rapidamente com a filha do guarda-caças Black George, mas é pela linda filha do Sr. Western, Sofia, que se apaixona, e é retribuído. As aventuras propriamente ditas começam quando o pai de Sofia descobre que a moça quer se casar com o “bastardo” e decide forçá-la a se casar com Blifil, o vilão que se encarrega de contar as maiores mentiras acerca do caráter e das feitas de Tom para o tio. A esta altura, havia-lhe morrido o pai, de quem herdara a “boa” e “honesta” índole, e a mãe, Bridget, tornando-o o único herdeiro potencial das riquezas e das terras do tio.
A trama está feita: Sofia encontra um modo de fugir com sua criada, em direção a Londres, onde se refugiaria com uma parenta, e Tom Jones, rejeitado pelo protetor por causa das blasfêmias de Blifil e sem esperanças de se casar com sua amada, é expulso da casa de Allworthy e sai sem rumo. Primeiramente, quase chega a se alistar no exército, mas uma série de incidentes fazem com que ele saia ao encalço de Sofia, e no caminho encontra nada mais, nada menos do que o mestre de latim, Partridge, de quem ouve toda a confusão acerca do seu nascimento. Ambos seguem caminho para Londres, de estalagem em estalagem, sempre no encalço de Sofia, e muitas confusões se seguem. No melhor estilo Fielding, digo que não vou cansar o leitor e a leitora e de que faço desta resenha o que bem entender, e que não interessa aqui reproduzir todo o enredo, mas destacar dois aspectos bem interessantes: o primeiro diz respeito à sociedade inglesa da época e o segundo à estrutura e à inspiração para este romance que foi tido, pela história da crítica literária, como o primeiro romance realista inglês.
Voltemos aos personagens de Fielding. Nas andanças pelos condados ingleses, Tom convive com o submundo dos ladrões, assassinos, ciganos, oficiais do exército e a ralé que compõem grande parcela da sociedade da época,e se destaca, sempre, como um ótimo juiz de caráter que evita a briga a todo custo mas não hesita em defender a honra de uma mulher, quando essa assim o merece. Ao longo de suas aventuras e desventuras, aprendemos um bocado sobre o mundinho das fofocas e intrigas, do disse-que-disse dos criados, cujas impertinências e indiscrições revelam muito mais do que poderiam e acabam por colocar seus patrões em situações perigosas, ao mesmo tempo em que acabam, muitas vezes, por salvá-los de enrascadas e de intrigas e mentiras engendradas pelas pessoas da corte, que como  bem aponta o narrador, vivem para prejudicar e dissimular, de forma a angariar paixões e alimentar seus vícios. Tom, o “enjeitado”, era muito mais correto e nobre do que sua origem permitia que o fosse, pela “natureza” de onde havia ele surgido. A propósito, a própria história de Tom é um sintoma da sociedade inglesa do século XVIII, quando ela se viu inundada de “enjeitados” (“foundlings”, em inglês) frutos de relacionamentos extraconjugais e o que gerou a necessidade de o governo e as sociedades de caridade fundarem o primeiro hospital do enjeitados (que sobreviveu até início do século XX).
Como contraponto às loucuras do bom moço em busca de sua amada, o leitor encontra o mestre Partridge, bonachão, comilão e preguiçoso, que segue seu mestre e o coloca, bem como o tira de, confusões e quiprocós. No bom estilo Sancho Pança, em quem ele foi bastante inspirado – e de forma bem caricata –, Partridge auxilia Tom Jones e, tal como Sancho, dentro do que lhe é possível, controla o temperamento do amo (a quem insiste em chamar de amigo e de quem diz que não é empregado, embora na prática o seja) e o livra de grandes enrascadas.
Como todo bom romance do século XVIII, a história conta com subenredos que não vale aqui detalhar, seja pela importância menor, seja pelo nível de minúcias que exigiram muitas explicações. Vale dizer que a história se resolve a contento porque, na verdade, revela-se a grande origem de Tom: ele é, na verdade, um fidalgo, filho da própria Bridget Allworthy com um protegido do juiz que havia morrido muito cedo. Ora, sendo solteira e dona de reputação e fortuna, Bridget arma o esquema para que Tom seja amparado pelo irmão e viva com ela, sem que para isso arrisque sua posição. Vale ainda dizer que, ao morrer, deixou essa revelação clara em carta ao filho Blifil, mas este, ganancioso e invejoso, havia ocultado a informação, que vêm à tona somente no final da trama. No mais, deixo ao leitor e à leitora a tarefa de ler o romance e se deleitar com a ironia do autor, a capacidade de narrar como se fosse Fielding um titereiro (para quem não sabe, um manipulador de marionetes), os comentários mordazes que ele tece contra os Whigs  e os tories  -- representantes políticos ingleses da ala direita --, e a maestria com que analisa a sociedade e o papel do escritor ao colocá-la no papel, em forma de criação artística. Como ele mesmo o diz, na conclusão de sua introdução, ao construir uma bela comparação do papel do escritor ao de um chef e de seu trabalho a um banquete: “em nosso caso, apresentaremos não só uma lista geral dos pratos de todo o banquete, mas ofereceremos ao leitor listas especiais para cada serviço apresentado. Em nosso banquete mental as iguarias se limitam à natureza humana. Mas o leitor não pode ignorar que a natureza humana, aqui reunida num só nome geral, apresenta uma prodigiosa variedade. E será mais fácil a um cozinheiro dar cabo de todas as espécies de alimentos animais e vegetais do que a um escritor esgotar tão dilatado assunto”. A esta altura do campeonato, ao encerrarmos a série de leitura e resenha de cinquenta volumes da Coleção Clássicos da Literatura Juvenil, bem sabemos que o caminho mais do que comprova esta afirmação e, espero, tenha deixado em você a vontade de percorrer, enquanto viver, o universo infinito da experiência humana que a literatura proporciona.

Fonte de informações sobre o autor:

9 Comentários:

Blogger Adm. Eder Silva disse...

Olá Fabiana! Tudo bem?

Adquiri recentemente a coleção Clássicos da Literatura Juvenil em um sebo e pesquisando na web sobre as obras encontrei seu blog. Notei o excelente trabalho que você desenvolveu escrevendo as resenhas de cada livro e que concluiu recentemente. Ainda não li todas as resenhas, mas dá para perceber que o conteúdo apresenta ricas informações sobre as histórias, autores e análises do contexto social do tempo em que as obras originais foram escritas. Utilizarei essas informações para a leitura de todos esses livros.

Também tenho um blog voltado à Literatura Estrangeira, focado nas obras de Júlio Verne, em que estou escrevendo resenhas sobre os livros que compõe as chamadas Viagens Extraordinárias. Caso queira colaborar com seus ecritos para este blog, suas informações serão bem vindas.

Tudo de bom e muito sucesso :D

16 de março de 2014 às 20:23  
Blogger Vinício das Mercês disse...

oi fabi eu tenho parte dessa coleção a parte final

20 de abril de 2014 às 18:29  
Blogger Belle disse...

Olá, sou estudante de Letras e apaixonada por literatura infanto-juvenil. Ao pesquisar livros na biblioteca da Universidade (UFRPE), me deparei com uma coleção chamada "Grandes aventuras" que, se não me engano, foi posterior a essa e republicou alguns títulos; porém, me interessei bastante em obter mais informações sobre esta série e tenho uma dúvida: quantos livros foram ao todo? Foram 50? O seu blog é fantástico e certamente darei uma lida nele por completo. Muito obrigada por esse belo trabalho!!!

22 de novembro de 2014 às 11:41  
Blogger Gi Favetta disse...

Oi Fabiana, recentemente consegui na OLX 39 livros da coleção clássicos da literatura juvenil, procurando pelas sinopses dos livros encontrei seu blog, estou apaixonada pelo seu trabalho, apresenta resenhas ótimas e detalhas, parabéns pelo trabalho e agradeço o conteúdo.

30 de outubro de 2015 às 21:59  
Blogger Leonora Golin disse...

Olá. Eu cresci à base dessa coleção. Fiquei surpresa e alegre ao ver as capas.
Seus posts são muito bons. Parabéns!

4 de janeiro de 2016 às 21:43  
Blogger Antônio Salles disse...

Comecei a adquiri-los em 2013. Comprei quase toda a coleção e... doei tudo quando me mudei de Fortaleza para Taguatinga, DF.

Papai, que completou 84 anos há dois dias, comprou o volume 2 da Coleção, "O Conde de Monte Cristo" (dez 1971). Era e ainda é fã desta estória. Ele começou a lê-lo para nós seus filhos, na época eramos apenas crianças. Nunca terminou.

Há três anos tomei a decisão de obter toda a coleção. Fui comprando-os paulatinamente e assumi sua antiga posição de leitor (hoje, ele está praticamente cego). Li uns doze ou treze volumes (podem ter sido mais) para ele que apreciou sobremaneira as narrativas. Me emociono ao cumprir uma tarefa iniciada por ele.

3 de outubro de 2016 às 18:38  
Blogger Fabi R. disse...

Ola Fabiana, tudo bem? Estou procurando a coleçao da Abril Cultural (Classicos da Literatura juvenil) para minha filha e gostaria de saber se você teria interesse em vender a sua. Por favor, entre em contato comigo pelo email fabianarguimaraes@gmail.com
Obrigada.

13 de fevereiro de 2017 às 17:31  
Blogger Cássia Dall'Igna disse...

Boa tarde, Fabiana!
Estou encantada com este seu maravilhoso trabalho. Sou professora de Literatura aqui em Alta Floresta-MT e estou num trabalho intenso de leitura com meus alunos. Cresci com a leitura destes clássicos e meu desejo é que meus alunos também os leiam. Estou empenhada em apresentar aos meus alunos bons textos e suas resenhas ficaram muito claras e acredito que nossos alunos apreciarão a leitura. Gostaria de sua permissão para tornar suas resenhas material didático para incentivo à leitura destes clássicos. Logicamente com os devidos créditos. Há tempo estou pesquisando informações a respeito dos clássicos para que meu trabalho seja realmente eficiente e que eu possa proporcionar às crianças um bom percurso nessa caminhada de formação de leitores. Meu e-mail cassiadalli@yahoo.com.br.
Grata pela partilha!
Abraços literários aqui do Mato Grosso

11 de março de 2017 às 16:15  
Blogger Fabiana Tavares disse...

Cássia, a resposta vai tarde, mas antes agora do que nunca. Fico contente que tenha apreciado o material e, se servir para aulas, tem minha permissão para o uso em aulas, desde que, é claro, sejam dados os devidos créditos. Espero que seus alunos saibam valorizar seu trabalho de educação para o letramento literário! Um abraço da Fabiana.

19 de outubro de 2018 às 11:18  

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